LEMBRETE

sábado, 8 de março de 2008

A CULTURA E O ARTISTA

O que é Cultura na ótica de uma dramaturgo?


*Augusto Boal

Palavras são meios de transporte, como o trem, a bicicleta e o avião; a palavra Cultura é um enorme caminhão que suporta qualquer carga. É necessário defini-la, para que saibamos do que estamos falando, quando dela queremos falar.

Cultura é o que estamos fazendo aqui, agora, neste instante, discutindo o que é a Cultura. Cultura é este microfone, esta mesa, esta sala. Nada disso existia – é fruto da mão humana, executora de nossos pensamentos e desejos.

Este encontro não é apenas “um” exemplo do que seja a Cultura: é o máximo exemplo, pois Cultura é a reflexão do ser humano sobre si mesmo e sobre o mundo, e sobre o que faz neste mundo. É o feito e o fazer, é o como fazer o que se faz. É a criação de uma realidade não prevista nos desígnios da Natureza. Um Real objetivo, como a construção de casas e pontes, feitas de pedra; e um Real subjetivo, como a Moral, feita de valores.

A Cultura possibilita e engendra a Arte, que é o seu estado supremo e soberano.
Uma lenda antiga e distante – e tudo que é distante e antigo nos dá a impressão de verdadeiro – diz que a Arte tornou-se necessária para completar a incoerente e desorganizada criação divina.

Deus, segundo a lenda, por mais perfeito, veloz e talentoso que tinha sido, tinha também seus limites, e não foi capaz de completar a Obra que havia planejado, no tempo que havia calculado. Calculou mal: seis dias mostrou-se curto prazo, mesmo para o Todo Poderoso, pois que o Poder, ao existir, fixa seus limites; se não tivesse, seria também meu, nosso e vosso, seríamos todos divinos: o poder seria substância universal e não predicado do poderoso. Até o Poder tem fronteiras.

Deus, cansado – toda força, na exaustão, encontra seus limites – desconsolado e triste, buscou merecido descanso no domingo, mas não sem antes apelar para os Artistas que logo vieram em seu socorro para reorganizar o mundo que ele mal havia – e havia mal – criado.